sexta-feira, 4 de julho de 2025

Da lua cheia II



sob a lua cheia
o poeta anda com o peso da existência nos ombros
sob a lua cheia
o poeta chora porque a dor se fez adaga afiada
e perfura-lhe sem piedade
sob a lua cheia
o poeta ergue os braços buscando acolhida de um abraço
sob a lua cheia
o poeta desenha andanças no chão da sua aldeia
e percebe que a lua anda pelo céu da cidade
sob a lua cheia
lua andarilha, poeta andarilho
sob a lua cheia
o poeta encontra outra lua de carne e osso
bailarina da princesa do norte
sob a lua cheia
o poeta canta uma canção e adormece.

Da lua cheia I



sob a lua
minha alegria deseja um poema
falta-me um conhaque
faltam-me palavras
falta-me perder o juízo
transbordo encantos
sob a lua
vou-me pela rua
alcanço as trevas e a luz lunar
brilha nos meus olhos
sob a lua
o poema nasce em mim
cheio de luz
da lua cheia. 

Dos instantes

 Para minha irmã Liduina Melo dos santos - In Memorian

contigo fiz profecias
só coisas boas iriam acontecer
contigo cantei
como se rezasse uma oração
contigo vivi infâncias
e nos agarramos nas caudas das lendas
que nos deixaram sob o arco íris
contigo alcancei minha juventude e velhice
num tempo veloz que faz tudo ser por um triz
contigo bebi da tua alegria
que me trouxe música e dança
sem ti ficarei sem nenhum verso
bem menos poeta
sem ti
eu morro de saudades. (16\06\25)

sexta-feira, 6 de junho de 2025

No quarto do meu filho



vi Tatiana nua no calendário de 1994

encontrei-o amassado dentro de um livro

desamassei a folha e lá estava ela

com poucos seios e uma bunda abundante

Tatiana jovem mulher de 1994

descobri sua nudez em 2025 numa manhã de domingo

no quarto do meu filho.

Profecia de final de maio

a poesia recitada tem ouvidos para ela?
a poesia que se cala tem os ouvidos do silêncio?
a poesia escrita nos guardanapos sobreviverá?
a poesia que eu engendro na minha mente pesará junto a existência?
um poeta cheio de fé ergue-se diante das tantas indagações
fica maior do que elas e me diz que a poesia será ouvida nos becos,
no café da manhã, nos corpos dos amantes, nos cultos e nos altares
ela gritará com a fúria que lhe é peculiar.

No meu viver


desde cedo, a morte sempre me rondou
suas narinas afagam minha nuca
seu hálito fétido apossou-se do ar que eu respiro
e a minha poesia se mostra pesada da sua presença
meus versos não omitem os meus medos
nem a perseguição dela no meu viver.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Em uma noite de maio

pandora forjada no barro tal qual eva
pandora sob o céu conduzindo um vaso ou uma caixa?
o que ela conduz é leve ou pesado?
o mal está aprisionado no vaso ou na caixa?
pandora me destina um sorriso e ensaia uma traquinagem
compreendo que o que está nos seus domínios não é bom
e se a bela dama vacilar não ficará pedra sobre pedra.  

Consolo (in)certo


as mães vão embora
às vezes avisam, as vezes é intenso o silêncio
as mães vão embora de dia ou de noite
nenhum rei do mundo pode mover céus e terra
para que elas fiquem
as mães vão embora
e o filho sendo um grão de milho ou uma árvore frondosa
fica a lamentar entre os mortais
reza, choro, vela acesa, joelho dobrado
não conseguem trazê-la de volta
resta ao enlutado o consolo divino. 

Ainda sexagenário



60 + 1
uma nova contagem
um novo ciclo
uma janela que se abre ao lado de uma porta
duas possibilidades entre incertezas
minha certeza é que tudo acaba
num piscar de olhos.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Sempre no presente

as feridas da alma não saram
fazem uma pausa no grito
o clamor se rende ao silêncio
ordenado pelo tempo
uma fala
uma ideia
um gesto
uma lembrança
uma insinuação…
finda o pacto
e o peito abre-se outra vez bem mais feroz
revelando uma dor acumulada. 

Novo poema

na fia
eu espero
na fila
eu fico exausto
na fila
eu exercito as panturrilhas
na fila
eu rezo
na fila
eu busco a poesia
na fila
eu a encontro latejando em uma mulher
na fila
eu estou a parir um novo poema.

Enquanto vivo entre os mortais

vou nem sempre de mãos dadas
se alguém me destina a mão, agarro-a
se não tenho amparo ergo-me e me vou
a solidão não me assusta
tenho-a junto a mim desde minha geração no ventre
companheira na vida e além da vida?
conto comigo enquanto vivo
enquanto morro
até a última respiração.