segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Discurso do vate sexagenário

 



ontem eu tinha vinte anos

não me agredia as fúrias do tempo

eu tinha a bravura de um guerreiro

as dores do viver não eram intensas em mim

hoje eu tenho sessenta anos

e o tempo é bem mais veloz na sua passagem

entre os mortais

envelhecendo tudo que ele contempla com se fosse um deus cruel

tenho as dores do mundo e todos os sentimentos também

o tempo em minha matéria pesa

curva-me os ombros, entorta-me

entrego-me a poesia e aos seus apelos

de mulher dengosa ou furiosa

riqueza que eu partilho sem me empobrecer. (11\10\24)

Em combate

 

Enquanto eu rezo meus pensamentos se deslizam no teu corpo

Enquanto eu rezo tu ficas a me perturbar

Enquanto eu rezo tu me exibes a bunda

Enquanto eu rezo tu deitas os seios diante dos meus olhos

Enquanto eu rezo tu meneias a cabeça e os cabelos cacheados

Enquanto eu rezo tu gemes recordando o orgasmo da noite passada

Enquanto eu rezo me flagelo com o terço para que desapareças

Enquanto eu rezo tu me tiras do caminho rumo ao céu

Enquanto eu rezo tu me vences no combate

Continuo no dia seguinte com o terço na mão. (25\10\24)

Busca vespertina

 

enquanto eu busco um verso matam mulheres pelo mundo

enquanto eu busco um verso o sul e o leste da Espanha estão sob o domínio das água

enquanto eu busco um verso carrego por toda parte a mandíbula inferior dos meus mortos

enquanto eu busco um verso tenho dentro de mim coisas para serem esquecidas

enquanto eu busco um verso a poesia não se anuncia no que eu vejo

enquanto eu busco um verso tudo jaz no campo -santo

enquanto eu busco um verso vejo na esquina uma tarde inesquecível de maio

enquanto eu busco um verso tudo acontece no mundo

e num piscar de olhos tudo se acaba

porque tudo é frágil e o verso que eu busco será adubo de cemitério

ou nem isso. 

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

no tempo



setembro findando
a vida resistindo nas garras da morte
setembro findando
cabelos ao vento no tempo que passa
setembro findando
e eu tenho uma rosa linda nas mãos
setembro findando
e nos anuncia um novo mês
setembro findando
na minha e na tua vida
setembro findando
vícios novos e antigos persistem
setembro findando
mas tudo continua
porque a vida ainda não se rendeu. 

Das linhas lusitanas

 



Despe-te só para mim

Por favor, diz que o fazes. Nuno Guimarães



meu bem já podes vir me ver

sobral é uma cidade quente

não sentirás frio ao despir-se para mim

venha querida sem medo desnudar -se para mim

deves -me isso

lembra-te dessa promessa sob a lua cheia?

venha querida durante o dia ou durante a noite

minha cidade não esfria

desnude-se para mim meu anjo

pagarás tua promessa e não te sentirás mal

porque eu a banharei com água dormida. (23\09\24)

 

 

Poema de face (In)existente

 



quando eu nasci disseram-me que um anjo me guardava dos males

cai, levantei, não senti suas mãos me erguendo

os abismos me seduziram fiquei só por lá

fui gauche?

fui

fui pela vida

fui

tinha a morte na minha sina?

tinha

e o anjo que devia me guardar

nunca me seguiu os passos

nunca soube seu nome

nem se era torto como eu

e a sua voz não me chegou aos ouvidos. (02\10\24)

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Na sina do pedinte



quem pede recebe
não
sim
ou talvez
quem pede recebe
leva algo na memória
sim
não
ou talvez
quem pede recebe
vai-se levando na bagagem
sim
não
ou talvez.

Entre nós



entre nós as mesmas coisas
o mesmo círculo vicioso das metáforas e da poesia
entre nós o mesmo vinho do porto
que eu só encontro em tua casa
entre nós as mesmas falas e os mesmos poetas diletos
entre nós o tempo passa, a tarde cai, vem a noite
entre nós se ergue a despedida
preciso ir e seguir minha sina
a poesia do nosso encontro me chama
deitá-la-ei numa folha de papel em branco
antes de me entregar ao sono.

De um ponto




o bico do peito num ponto de vista

o bico do peito no ponto da vista

o bico do peito é uma ponta ou aponta?

o bico do peito em linha reta tem direção certeira?

o bico do peito no dizer do vento é uma seta

o bico do peito exposto ou sob as vestes existe

quer o olhemos ou não

o bico do peito é um dedo em riste

aponta para mim ou para ti?

eis o mistério? 

sábado, 3 de agosto de 2024

Discurso ocidental



a espada e a cruz
a cruz e a espada
apossaram-se de mim
encheram-me medos
deram-me culpas e pecados
a espada e a cruz
a cruz e a espada
invadiram os mares
dominaram os povos
vestiram-nos com suas vestes
deram-nos suas imagens e semelhanças
a espada e a cruz
a cruz e a espada
guiaram mãos
guiaram vidas
conduziram-nos aos braços da morte
a espada e a cruz
a cruz e a espada
ecoaram no ocidente
o discurso dos podres poderes.

Na bike I



girando a catraca saio do lugar
girando a catraca pedalo mais vezes
girando a catraca vejo novas coisas
nos mesmos caminhos
girando a catraca vejo seu corpo em movimento
nos vemos passando um pelo outro?
girando a catraca irmano-me ao sol, ao vento
aceno aos pássaros no céu da longa estrada
girando a catraca levo-me a outra cidade
onde sou recebido como filho dileto
girando a catraca desenho despedidas
com promessas de um breve retorno
girando a catraca volto para casa
com muitas fotos e coisas novas para dizer. 

Depois dda canção



meu coração bate
bate a tua porta
meu coração bate sob a tua mão
meu coração bate encostado no teu rosto
meu coração bate próximo ao teu
meu coração bate feliz
porque bate, bate
e nunca apanha.