segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Retrato

Meus cabelos ao vento

Quase todos brancos

Acenam,

Refazem gestos

Rendem-se à pressa

Da minha sombra...

Do tempo que passa

Ainda é tempo de nos olharmos

Ainda é tempo de caminharmos juntos

Ainda é tempo de fazermos as mesmas pegadas

Nos mesmos caminhos

Ainda é tempo de lermos poesia

Sentados no alpendre aguardando o sol

Ainda é tempo de nos tornarmos deuses

Ainda é tempo de sermos eternos

Num tempo veloz e breve...

Divórcio

Deus une

O homem separa

O homem une

Deus separa?

A morte separa!

Une os seres em algum lugar?

Prenúncio

O que eu não disse,

Que não fique por dizer.

A poeira que deixei no teu corpo

Partirá no próximo vendaval...

Os poemas que te dei

Seguirão o mesmo destino.

Bailarão no céu

Sugarão a lua

A treva absoluta

Extinguirá o que fomos....

De Catulo e o tempo

Houve um tempo em que Catulo e o tempo

Não existiam.

Os pássaros tinham pulsos

E sonhavam como os homens.

Os lírios do campo contemplavam os pulsos

Dos homens, dos pássaros

Que pulsavam velozes,

Desatando caminhos....

Adevertência

Se roubarem as flores do meu jardim

Se devorarem o rebanho do meu primogênito

Se beberem toda água do meu riacho

Se queimarem todos os meus versos

Se profanarem a terra dos meus ancestrais

Se semearem joio entre o nosso trigo

Se comerem o nosso pão

Se levarem os nossos mitos

Se levarem minha pedra de estimação

Irei ao encontro deles com a minha espada

Sedenta de sangue

E faminta de carne ...

O FILHO PRÓDIGO

(Publicado na revista mundo jovem em 1992)

O poema que eu não fiz

Que ninguém o faça

Que ele se refaça

Nos seios esqueléticos

Das mudanas que eu não conheci...

Que ele sangre das pedras

E se transforme em pães

Para alimentar os filhos

Os filhos que eu não fiz

Que ele grite nas capoeiras

Que ele dance ciranda

Que ele pule nas praças

Que ele fecunde os ventres

Todos os ventres sedentos

E faça com que nas madrugadas

Surjam choros inéditos

Novas crianças

O poema que eu não fiz

Que ninguém o faça

Que ele se refaça

No seu silêncio...

Lúdico

O rato que roeu a corda

Foi o mesmo que roeu a roupa do rei.

O que roeu o pezinho da princesa

Eu não sei

Ninguém sabe.

Todos os ratos morrerão

Por ordem do rei....

Ofício

Perco-me entre palavras

E sílabas inquietas.

Quando volto a mim

Sinto-me abatido.

Tu me chamas, fecho o livro,

Nego-te os ouvidos...

Sólio

Este trono de merda é só meu

Trono fétido por natureza,

Se é que tem natureza o objeto de sua constituição...

É nele que faço minhas leituras

É nele que busco palavras

É nele que busco poemas

É nele que cago e mijo.

Este trono de merda é só meu

Não o divido com ninguém

Comprei-o com meu próprio dinheiro

Finquei-o a terra usando minhas forças

Trono plebeu!

Trono fétido!

Trono verde indivisível...

Defesa

Eu sou inofensivo, senhores,

Trago enigmas fatigados nas mãos

E fartos cabelos brancos na cabeça.

Minhas pálpebras estão exaustas

E o meu olhar nega-se a contemplar

Esse mundo caduco.

Este céu que nos cobre causa-me tédio.

Mas ainda há palavras em minha boca, posso feri-los

Posso jogá-las no vácuo ou aprisioná-las

Entre as unhas.

Senhores, sou inofensivo,

Verbalizar sentimentos não significa

Um ataque,

Concretiza o medo que se faz defesa.

Insulto

Que fique na tua boca

O meu hálito fétido

Como resposta

Aos teus insultos ....